SIMULAÇÃO – INEXISTÊNCIA. Simular é o ato de fingir, mascarar, esconder a realidade, camuflar o objetivo de um negócio jurídico valendo-se de outro, eis que o objetivo intentado seria alcançado por negócio diverso, daí o motivo de o artigo 167 do Código Civil dispor que o negócio jurídico simulado será nulo. Não é simulação o desmembramento das atividades por empresas do mesmo grupo econômico, objetivando racionalizar as operações e diminuir a carga tributária. Recurso de Ofício Negado.
(Processo 19515.722111/201241, Data da Sessão: 17/03/2016, Acórdão 3302003.138).
(Obs.: Destaques postos.)
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), na decisão supra ementada, passa a entender que a divisão de uma empresa em duas outras, com atividades diversas e tendo por objetivo a redução da carga tributária, não caracteriza conduta abusiva por parte de seus sócios, tampouco simulação (nos termos da legislação civilista). Consequentemente, não se pode contemplar as empresas sob o prisma da configuração de unidade econômica, para fins de tributação.
Trata-se, pois, de planejamento lícito e muitas empresas poderão se beneficiar deste julgado, aplicando-o tanto aos casos em curso de julgamento, quanto àqueles em que a parte restou vencida na esfera administrativa e ora discute a dívida tributária na via judicial.
Mas se a segregação de atividades não constitui ilícito tributário, o que dizer das situações em que um sócio cria uma nova empresa e, para permanecer no SIMPLES, constitui-se em procurador de uma delas, atribuindo a titularidade das quotas a uma pessoa próxima, como permitido no Código Civil?
A fazenda pública costuma tratar este expediente, adotado pelos contribuintes desde a edição da Lei nº 9.317/1996, como crime de falsidade ideológica, figura penal tipificada no art. 299 do Código Penal:
Falsidade ideológica
Art. 299. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena: reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.
Parágrafo único. Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.
Como é cediço, a tipificação desta conduta tem por objetivo preservar o objeto jurídico “fé pública”, não se esgotando neste, mas estendendo-se a outros interesses.
Mas em que patamar se consubstancia a falsidade apontada no artigo supra?
Esta pode se manifestar de duas maneiras:
Na primeira hipótese, o agente “modifica as características originais do objeto material por meio de rasuras, borrões, emendas, substituição de palavras ou letras, números etc.” (JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 4º volume, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 4). Assim, ele altera o documento verdadeiro ou cria um outro, antes inexistente.
Já na falsidade ideológica não se vislumbram vícios no documento (rasuras, emendas etc.); todavia, este se faz presente sobre as “declarações que o objeto material deveria possuir, sobre o conteúdo das ideias” (JESUS, 1997:5). O documento, sob todo o aspecto material, é verdadeiro, mas falsas são as ideias que ele contém.
Analisando o tipo penal em apreço, o citado Autor traduz uma ideia basilar, que merece ser reproduzida, dada a sua importância (JESUS, 1997: 56-57):
Em qualquer das formas típicas de conduta, a falsidade deve recair sobre fato juridicamente relevante, i.e., a declaração falsa ou a omissão deve, por si só ou em comparação com outros fatos ou circunstâncias, ser capaz, direta ou indiretamente, de criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica de direito público ou privado. É preciso que a declaração configure essência do ato ou do documento. Assim, uma simples mentira, sem potencialidade para criar, alterar ou extinguir um direito, não constitui o crime. Em suma: a falsidade deve recair sobre fato ou circunstância cuja veracidade o documento tem a destinação de provar.
(Obs.: Destaques postos.)
Aqui se indaga se o indivíduo, ao se colocar como procurador de uma determinada sociedade, em cujo quadro societário figura pessoa de sua relação, ele estará, direta ou indiretamente, criando, modificando ou extinguindo uma relação de direito público ou privado, como destacado no excerto acima.
Ora, com a devida vênia, entendemos que não. O próprio Código Tributário Nacional (CTN), ao disciplinar a figura da Responsabilidade Tributária, estabelece seus limites nos arts. 134 (responsabilidade subsidiária dos sócios em sociedade de pessoas), 135 (responsabilidade dos gestores de sociedades) e 136 e 137 (responsabilidade pessoal por infrações). Logo, se o agente, na condição de gerente ou sócio materializa no mundo fenomênico quaisquer uma das situações descrita hipoteticamente nos dispositivos legais em apreço, caberá ao mesmo a responsabilidade pelo ato praticado.
Mas o problema é que os agentes fiscais dificilmente se desincumbem desse ônus, no curso do processo administrativo, transferindo ao administrado a obrigação de provar que ele não praticou qualquer ato eivado de ilegalidade.
Com o devido respeito a entendimentos contrários, não entendemos como “simulação” a citada modalidade de planejamento tributário. Não há a intenção (dolo) manifesta de prejudicar terceiro, até porque a relação jurídica de direito público surgida entre o procurador e o ente federativo competente para instituir e exigir o tributo permanece viva, independentemente de quem esteja figurando, efetivamente, como sócio da pessoa jurídica. Segundo Damásio, “a vontade de alterar a verdade despida da finalidade de prejudicar terceiro não é suficiente para integrar o crime” (op. cit., 1997: 6). E tal assertiva encontra respaldo junto a doutrinadores de escol, como Magalhães Noronha e outros.
Não se pode afastar a ideia de que há autuações que são absolutamente forçadas, caracterizando verdadeiro abuso na formação do título executivo, como bem destacado pelo e. Prof. Sacha Calmon Navarro Coelho (Curso de Direito Tributário Brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 743):
Os Fiscos, sabedores da leniência com que os juízes interpretam o CTN e a LEF (Lei de Execuções Fiscais), abusam na formação dos seus títulos executivos. Prescrevem delitos supostamente “confessados”, não permitem o contencioso administrativo quando há declaração prévia de tributo a pagar, colocam como sujeitos passivos “solidários” administradores e até sócios sem ingerência administrativa, nem pesquisam se houve culpa ou dolo na atuação dos dirigentes de sociedades, tornando seus bens indisponíveis e fechando-os nos bancos e cadins da vida, em violações exorbitantes os direitos fundamentais dos cidadãos. A situação está a tornar-se intolerável e merece ser melhor vista e revista pelo Poder Judiciário. (…)
É o caso, por exemplo, das autuações calcadas em presunções.
Face a todo o exposto, considerando-se que a existência ou não de vontade de fraudar o fisco – dolo específico, como apontado por Damásio de Jesus, essencial ao ato ou documento – deve integrar o crime de falsidade ideológica, consideramos que, na sua ausência, não se pode subsumir a conduta de se constituir como procurador de uma outra pessoa jurídica, com o fito de reduzir a carga tributária, utilizando-se das oportunidades dadas pela própria legislação pátria, à figura típica descrita no art. 299 do Código Penal.
Considerando, pois, a decisão exarada no Acórdão que nos serve de marco teórico, a interpretação deve ser favorável ao sujeito passivo, como estabelecido no art. 112 do CTN, aplicando-se às situações apontadas o mesmo entendimento manifestado pelo CARF em caso análogo.
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